Evolução Histórica da Farmácia: A carta de privilégios e o aumento dos boticários
O número de boticários não terá deixado de crescer em Portugal desde 1338, mas no século seguinte ele ainda seria insuficiente, principalmente para responder às necessidades em momentos de crise, como as resultantes das vagas epidémicas.
Segundo o trabalho do professor e investigador José Pedro Sousa Dias, é por essa razão, que em meados do século XV foi promovida a vinda de Ceuta de Mestre Ananias e de outros boticários, a quem D. Afonso V concedeu em 1449 uma carta, conhecida por Carta de Privilégios dos boticários. A Carta atribui vários privilégios aos boticários, respeitantes às condições em que podiam ser sujeitos à aplicação da justiça, à isenção do recrutamento militar, ao direito de porte de armas, à pragmática, à isenção da obrigação de aposentadoria e à isenção de vários impostos próprios dos ofícios mecânicos.
Este tipo de privilégios eram alargados às viúvas que mantivessem as boticas em funcionamento, assim como aos aprendizes que ascendessem a mestres, desde que o valor dos medicamentos possuídos fosse pelo menos de mil e quinhentas coroas.
A carta estabelecia também o princípio do controlo régio sobre as boticas e da sua inspeção (visitas). No entanto, a carta de privilégios cedo terá deixado de ser aplicada – se é que alguma vez o foi – para além do próprio Mestre Ananias e do grupo que o rodeava.
No século XVI, contrariamente ao texto da carta de privilégios, a profissão farmacêutica é considerada como um ofício mecânico e esse é o entendimento que se manterá até ao Liberalismo.
Este corresponde à forma como a farmácia e as restantes profissões da área de saúde se enquadravam na classificação clássica das artes, na qual a arte dos boticários e cirurgiões, a “Medicina ministrante”, pertencia ao ramo mecânico enquanto a “Medicina Dogmática”, a dos médicos, pertencia ao doutrinal.
Separação da profissão farmacêutica da profissão médica
A separação entre as profissões médica e farmacêutica também foi regulamentada por D. Afonso V, que promulgou outra carta em 1461 determinando a completa separação entre profissões. Este diploma vedou aos médicos e cirurgiões a preparação de medicamentos para venda e proibiu qualquer outra pessoa de vender medicamentos compostos ao público em localidades onde houvesse boticário.
Uma única exceção foi aberta aos teriagueiros, desde que portadores de uma certidão médica atestando a boa qualidade da teriaga (substância tipo antídoto contra várias enfermidades, como mordeduras de animais venenosos). Em contrapartida, os boticários foram proibidos de aconselhar qualquer medicamento aos doentes. Este princípio da separação de interesses entre a prescrição e a dispensa foi reforçado em 1561, com a proibição das sociedades entre médicos e boticários e da dispensa de medicamentos por boticário parente do médico que os receitou.
Os boticários da cidade de Lisboa
No final do século, em 1497, foi elaborado o Regimento dos boticários da cidade de Lisboa, reformado em 1572. Estes regimentos não estipulavam quaisquer funções ou direitos para as corporações farmacêuticas, mas determinavam uma série de obrigações, definindo quais os livros que os boticários eram obrigados a possuir, assim como os pesos e as medidas convenientes à profissão.
Os preços dos medicamentos tinham de corresponder aos de uma tabela registada na câmara municipal e deviam ser inscritos na própria receita. Os medicamentos só podiam ser vendidos pelo próprio boticário e na ausência deste, por um praticante com um mínimo de dois anos de prática e com licença camarária. O boticário era obrigado a avisar o médico de que iria compor o medicamento receitado, para que ele assistisse à sua preparação.