Medicina e cristianismo na antiguidade
A cristianização do mundo antigo
Ao reinado de Augusto, imperador absoluto de 31 a.C. até 14 d.C., seguiram-se quatro dinastias governando a Pax Romana em todo o império. Foi o Alto Império. Em 235, com o assassínio de Severo Alexandre, iniciou-se o Baixo Império, dividido em Baixo Império pagão (235-305) e Baixo Império cristão (306-476). O Baixo Império cristão iniciou-se com o reinado de Constantino, que concedeu a liberdade de culto aos cristãos através do Édito de Milão (313 d.C.) e fundou a cidade de Constantinopla, em Bizâncio.
A visão cristã da Medicina
No século V, o teólogo Teodoreto (ca. 393-458) referia-se a um outro religioso como “estando adornado com a qualidade de padre e também com a arte racional da terapia, que aprendera em Alexandria, e com a qual podia ajudar os doentes e combater doenças. Esta arte racional da terapia é a medicina greco-romana, dominada pelas teorias e de Hipócrates e Galeno, que foi utilizada como metáfora, estudada por várias figuras da Igreja e que se tornou parte integrante da sua tradição cultural até finais da Idade Média.
Doença e pecado
Encontra-se amplamente documentado o uso metafórico da medicina pelo Cristianismo. Ele entronca diretamente na ideia da ‘redenção’ e é utilizada por Cristo, que se compara a si próprio com um médico. Recorrendo a uma analogia cara aos filósofos clássicos pagãos, que se consideravam médicos da alma, os padres da igreja vêem-se como medici animarum, seguindo o exemplo daquele que é simultaneamente o médico e o medicamento: o Christus medicus.
A associação entre o pecador e o enfermo, por um lado, e a medicina e o cristianismo redentor por outro, tema que será repetidamente tratado por inúmeros autores, liga-se diretamente às já referidas crenças sumérias e assírio-babilónicas sobre a saúde e a doença. A ancestralidade da visão cristã da saúde e da doença encontra-se patente na manutenção da crença na doença por possessão demoníaca. O próprio Jesus Cristo curou através do exorcismo um mudo possuído pelo demónio (Mateus, 9, 32). A associação entre doença e pecado é também algo que permanece até à atualidade e não apenas na visão popular da medicina. O Cristianismo dá uma nova dimensão ao pecado como causa da doença. O pecado de família, presente na cultura mesopotâmica e judaica e nas conhecidas perguntas dos Apóstolos e dos fariseus sobre o cego de nascença, é rejeitado e substituído pelo pecado coletivo, o Pecado Original. A Queda do Paraíso retirou a imortalidade ao Homem e tornou-o sujeito à doença e ao sofrimento. O pecado em geral, diretamente, se for individual, ou em última análise o pecado coletivo, mantém-se como a causa última da doença.
Dor, sofrimento e religião curativa
Ao sacrificar-se pela humanidade, Jesus Cristo tornara possível a sua salvação do pecado, permitindo que os homens alcançassem o céu e a vida eterna, com a consequente erradicação da doença. Mas a vida eterna pressupunha um processo de treino e aprendizagem terrena no seio da irmandade dos crentes, do qual fazia parte o sofrimento, incluindo a dor física causada pela doença. Desta forma, como nas culturas anteriores, a doença continua a ser causada pela divindade, mas, contrariamente ao que se passava no mundo pagão, a doença deixava de ser um mal absoluto, provocado por uma entidade sobrenatural, mas que podia ser anulado por uma outra. O Deus único do Cristianismo visava o bem último mesmo quando aparentemente causava o mal. O sofrimento do Novo Testamento tem um objetivo: é usado por Deus para o bem e a maturidade espiritual dos seus filhos, para corrigir certos pecados ou fraquezas, como a gula, para aumentar o autoconhecimento e estimular as graças cristãs, como a humildade, a paciência e a fé. É esta uma das ideias que são caras no uso da medicina como metáfora. Da mesma forma que, para atingir a cura final, o médico acentua a necessidade de recurso a um regime e meios terapêuticos rigorosos, e frequentes vezes penosos, também Deus exige uma conduta de vida pura e pode mesmo enviar o sofrimento, para que o homem alcance a vida eterna.
O Cristianismo, sem enjeitar o papel da dor, do sofrimento e da doença, surge desde os seus inícios como uma religião curativa. O mesmo Deus que dá a doença também pode dar a cura. Os Evangelhos relatam cerca de três dezenas e meia de curas realizadas por Jesus. A prática curativa de Cristo é continuada pelos apóstolos e primeiros cristãos.