Evolução Histórica da Farmácia: Medicina hospitalar e medicina laboratorial

A Medicina do século XIX passou por profundas transformações, referentes a dois grandes períodos, correspondendo às duas metades do século. A primeira metade é, do ponto de vista institucional e da prática médica, o período da medicina hospitalar, a que corresponde, do ponto de vista da teoria, o período do programa anátomo-clínico. A segunda metade do século diz respeito à viragem para a Medicina laboratorial, com o desenvolvimento dos programas ligados à patologia celular, fisiopatologia e etiologia, que procuravam apoiar a Medicina nas ciências físico-químicas e biológicas modernas. Esta viragem é evidente numa citação de Claude Bernard: ‘considero o hospital apenas como o vestíbulo da medicina científica, como o primeiro campo de observação em que deve entrar o médico; mas o verdadeiro santuário da medicina científica é o laboratório’.

O ensino farmacêutico em Portugal

Até ao séc. XIX, a transmissão dos saberes farmacêuticos era realizada através da aprendizagem nas boticas. O acesso à profissão tinha lugar por via de um exame, realizado após um período de aprendizagem de quatro ou mais anos. Anteriormente aos séculos XVII-XVIII, o nível técnico da produção de medicamentos não exigia uma formação em instituições de ensino próprias e a aprendizagem com um profissional estabelecido, o mestre, era a que correspondia a um ofício mecânico. No campo das profissões de saúde, o ensino de nível superior estava reservado aos médicos, através da Universidade de Coimbra.

O documento legal básico que regulou o acesso à profissão farmacêutica desde o século XVI até ao século XIX foi o Regimento do Físico-mor do Reino (1521), em vigor até 1836. Este Regimento determinava como os praticantes seriam examinados por este oficial do rei e por médicos e boticários por ele escolhidos. Além dos regimentos do físico-mor, há ainda a considerar o Regimento dos médicos e boticários cristãos-velhos (1604) que regulava uma segunda via de acesso, de carácter mais restrito. Este segundo regimento regulamentou pormenorizadamente os partidos para boticários cristãos-velhos criados na Universidade de Coimbra anteriormente a 1585. Estes partidos consistiam em bolsas para praticantes cristãos-velhos, primeiro para acabarem de aprender gramática latina e depois para aprenderem numa botica, sendo o dinheiro do partido entregue a mestres boticários igualmente cristãos-velhos.

Uma vez considerados aptos pelos mestres, os praticantes eram examinados pelos lentes (professores universitários em Coimbra) de Prima e de Véspera da Faculdade de Medicina. Aos boticários dos partidos da Universidade era depois dada preferência no preenchimento dos partidos de boticários das câmaras, dos hospitais e das misericórdias. Em ambas as vias, o praticante trabalhava gratuitamente na botica do mestre durante o período mínimo de quatro anos que constituía a aprendizagem. O mestre, além do ensino, assegurava a alimentação e cama, normalmente na própria botica. A semana de trabalho era de sete dias e os tempos livres deveriam ser raros.

A aprendizagem deficiente

A introdução das novas técnicas químicas, assim como os avanços observados em geral na Medicina e na Botânica, nos séculos XVII e XVIII, vieram tornar manifestas as insuficiências do sistema de aprendizagem. Contudo, os boticários portugueses não avançaram com qualquer forma organizada de ensino da Química ou da Botânica, como aconteceu em outros países. Esta incapacidade deveu-se, em primeiro lugar, à influência muito diminuta das corporações de boticários: o ambiente não era favorável ao lançamento de projetos que implicassem a associação de esforços. Em segundo lugar, devido à estrutura da sociedade portuguesa, os boticários abastados, que poderiam custear uma experiência de ensino organizado, para melhorar a educação técnica dos filhos e assegurar-lhes a continuação da sua posição, estavam mais interessados em conseguir-lhes a entrada no clero ou nas profissões nobres, como a medicina.

Uma ajuda pública: as boticas estatais

As únicas tentativas de suprir as insuficiências da aprendizagem nas boticas, surgiram por iniciativa do próprio estado, não através de instituições específicas para o ensino da Farmácia, mas através de boticas estatais. Encontravam-se então o Dispensatório Farmacêutico do Hospital criado em Coimbra pela reforma pombalina de 1772 e a Botica da Casa Pia de Lisboa, onde Manuel Joaquim Henriques de Paiva ensinou desde 1794. O ensino da Farmácia ministrado na Universidade de Coimbra desde 1772, na cadeira de Matéria Médica, era dirigido principalmente aos estudantes de Medicina. Os praticantes farmacêuticos eram trabalhadores auxiliares. Trabalhavam, primeiro por dois anos como operários no Laboratório Químico da Universidade, e depois durante outros dois e até fazerem exame, como praticantes no Dispensatório Farmacêutico. Era-lhes facultado o acesso às explicações do lente de Matéria Médica, mas apenas enquanto forneciam aos estudantes médicos os utensílios e drogas com que estes trabalhavam. Podiam assistir às lições práticas que o lente desta cadeira dava uma vez por semana no Dispensatório, mas não assistiam às aulas teóricas, nem sequer às que tratavam da teoria farmacêutica. Os estudantes de Medicina, pelo contrário, deviam aprender a teórica e prática da Arte Farmacêutica num curso completo de Farmácia, aprendendo a fazer xaropes, unguentos, pírulas, electuários e todas as mais preparações da Farmácia, como o mais hábil boticário, e ainda melhor, uma vez que tinham a vantagem de adquirir o hábito de trabalhar com o auxílio dos princípios científicos que o facilitam e dirigem. Os primeiros lentes de Matéria Médica depois de 1772, José Francisco Leal (1744-1786) e Francisco Tavares (1750-1812) deixaram várias obras com interesse para o ensino da Farmácia.

Lisboa e as aulas no laboratório da Casa da Moeda

Em 1801 foi decidida a criação de um estabelecimento em Lisboa, onde houvesse uma aula de Docimásia e outra de Farmácia, sendo aproveitado o Laboratório Químico da Casa da Moeda para o efeito. Em 1804 esta cadeira de Farmácia foi anexada à Faculdade de Filosofia da Universidade de Coimbra, sendo nomeado lente o médico e farmacêutico Manuel Joaquim Henriques de Paiva (1752-1828), que já ensinava Farmácia na Botica da Casa Pia. A Henriques de Paiva, caído em desgraça depois das invasões francesas devido às suas simpatias liberais, se deve a autoria, tradução e edição de várias obras importantes para o ensino da Química e Farmácia em Portugal. Contudo, apesar de estar previsto que as aulas começassem logo em 1804/1805, este curso não terá chegado sequer a começar. Só em 1823 se iniciou neste laboratório o Curso de Física e Química de Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque, de que resultou o Curso Elementar de Física e Química (1824) desse autor, e ao qual assistiu um número muito grande de farmacêuticos.

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