Asclépio e a Medicina Clássica
A condenação do culto de Asclépio
A existência de espíritos malignos, ou demónios, é uma herança do mundo mesopotâmico ainda se manteve por parte do cristianismo. Diabo e demónios estão presentes nos evangelhos, ameaçando os homens com vários males: causando doenças, possuindo-os e enganando-os, fazendo-os cair em tentação e pecar. Para além de outros, o Cristianismo vai caracterizar uma nova categoria de demónios: os deuses greco-romanos. O mártir Justino descreve a sua origem. Os deuses gregos não eram uma ficção, mas eram sim os anjos caídos que se tinham cruzado com as filhas dos homens e os seus descendentes. Ignorantes deste facto, os antigos tinham-nos adotado como deuses, com os nomes que estes demónios tinham dado a si próprios e aos seus descendentes. Asclépio era um deles. Os autores cristãos não negaram as suas curas, da mesma forma que não negaram a sua existência. Apenas afirmaram que as praticava na qualidade de ‘demónio’.
A herança da Medicina Clássica e Filosofia
A síntese do pensamento grego e cristão começou a ser realizado pelos chamados padres alexandrinos, Clemente e Orígenes, que entendiam que a fé devia ser acompanhada pelo pensamento filosófico. Orígenes foi, junto com Santo Agostinho, um dos autores mais influentes da Igreja anterior à queda do Império Romano. O seu pensamento influenciou profundamente os padres da Capadócia, Basílio o Grande, Gregório de Nazianzus e Gregório de Nissa. Estes tiveram uma educação filosófica clássica, que impregnou o seu pensamento cristão. Basílio e Gregório de Nazianzus foram os compiladores da Philocalia, uma antologia dos escritos de Orígenes. Posterior, mas ainda parcialmente contemporânea dos padres da Capadócia, Santo Agostinho estudou e foi influenciado pela filosofia clássica, particularmente pelo neoplatonismo, ainda antes da sua conversão. S. Jerónimo também teve formação filosófica, embora o seu estudo em Roma o tenha aproximado particularmente dos autores latinos e não tanto dos gregos. Vários destes autores mantiveram grande proximidade com a medicina. Caesarius, irmão de Gregório de Nazianzus, estudou medicina em Alexandria e Basílio também terá estudado os seus fundamentos em Atenas.
A adoção da medicina greco-romana pelo cristianismo foi magistralmente estudada por Owsei Temkin. A medicina hipocrática entra no domínio da teologia cristã como um destacado auxiliar na argumentação em temas tão importantes como os que envolvem a ressurreição ou a astrologia. Vários autores cristãos, como Santo Agostinho recorrem à medicina grega para os seus argumentos. A medicina hipocrática tornou-se uma peça basilar na edificação de uma visão antropológica cristã, nomeadamente na que ficou expressa na obra Sobre a Natureza Humana, do bispo Nemesius de Emesa, que teria uma versão latina escrita no Século XI, pelo bispo Alfano de Salerno, precisamente uma das figuras fundadoras dessa escola médica.
Uma divergência central, a ‘criação’, separava os padres da Igreja dos filósofos pagãos. Se para estes o homem era um produto da natureza, da qual fazia parte, juntamente com os próprios deuses; para o cristianismo, tanto o homem como a natureza, a terra, os astros, os animais e as plantas, eram criaturas de Deus e existiam em resultado da vontade divina. Desta forma, o mundo é necessariamente bom enquanto produto de Deus e do seu plano para a salvação. O corpo é também ele criação de Deus e deve ser cuidado e preservado do pecado. Se o ‘verbo se fez carne’ é porque esta não se tornou maligna, mesmo depois da expulsão do paraíso.
Todo o conhecimento vinha de Deus
Central para a atitude dos padres da Igreja face à medicina é o entendimento de que o mundo material foi criado por Deus para ser usado por e para o homem. A divina providência concedeu ao homem os meios materiais para sobreviver fora do paraíso, incluindo a sabedoria e o conhecimento para os utilizar. “Todo o conhecimento vem de Deus”, citou Orígenes, para sublinhar a origem divina da medicina e a sua qualidade “benéfica e essencial para a humanidade”. A medicina é boa enquanto parte do mesmo plano para socorrer o homem na terra. Orígenes, Clemente, Gregório de Nissa, João Crisóstomo e Santo Agostinho, todos eles entendem que a medicina é um bem concedido por Deus que os cristãos não devem ignorar. O pecado em que estes poderiam incorrer seria o de pôr toda a sua fé na medicina e não em Deus, ou o de que a aflição pelo sofrimento e a busca da cura fizesse esquecer o carácter efémero da doença terrena e o bem supremo da vida eterna.